23 de maio de 2018

O Silêncio da Noite - Capítulo V - Justiça

Apesar do mal-estar que a acompanhava nos últimos dias e da preocupação com Shiryu, Shunrei tentava manter a normalidade de sua rotina doméstica. Estava terminando de preparar o almoço quando o telefone tocou, coisa bastante rara naquela casa. Esperava por essa ligação desde a partida de Shiryu, quatro dias atrás, então correu para atender com o coração vindo à boca de tanta ansiedade.
– Olá, Shunrei – disse a voz do outro lado da linha, com aquele jeito único dele de falar o nome dela e naquele tom amoroso que ela tanto gostava.
– Shiryu! – exclamou a garota alegremente ao confirmar o que sua intuição dizia. – Como você está? Eu estava tão preocupada!
– Estou bem. Já estou em Atenas e a Saori está chegando com o pessoal. Desculpe a demora para ligar. Foi um pouco difícil completar uma ligação para a China. E você, como está? Não estava muito bem quando parti. Melhorou?
– Sim – ela respondeu, embora fosse uma grande mentira. Desde que soube da gravidez, sentia-se cada dia pior, mas não queria deixá-lo preocupado. – Está tudo bem, meu amor.
– Fico feliz por isso. Estou hospedado em uma pensão em um vilarejo próximo ao Santuário. É um lugar simples, mas bastante agradável. Ontem teve uma feira por aqui. Provei algumas comidas que não conhecia. Foi uma experiência agradável de se ter antes de uma possível batalha. Talvez um dia possa trazer você aqui. Acho que ia gostar.
– Eu ia adorar! Mas será que vocês vão ter mesmo que lutar?
Ela pôde ouvir um longo suspiro do outro lado da linha.
– Acredito que não nos deixarão falar com o Grande Mestre facilmente… Você viu como foi com o Máscara da Morte… É aquilo que nos espera...
– Tome cuidado, Shiryu. Não quero que se machuque. Promete que vai se cuidar?
– Eu prometo tentar. E você se cuide também e cuide do Mestre.
– Pode deixar! Vamos cuidar um do outro.
– Preciso desligar agora, estou a caminho do Santuário. Ligo de novo quando puder, certo?
– Certo. Estou mais tranquila agora que falei com você. Vou rezar para que tudo corra bem lá.
– Eu sei… Reze…
Ele já ia desligar, mas sentiu que precisava dizer mais uma coisa para Shunrei porque, dependendo do que acontecesse no Santuário, podia ser a última vez.
– Eu amo você, Shunrei – ele disse. – Lembre sempre disso.
– Eu também amo você – ela respondeu, sentindo o coração acalentado pelas palavras dele.
Quando Shiryu desligou, Shunrei ainda ficou alguns minutos parada perto do telefone, com a voz dele ecoando na mente, especialmente as três palavras que ela mais apreciava: eu amo você. Porém o doce momento logo desvaneceu quando o Mestre Ancião voltou para casa com uma expressão preocupada, a qual piorou quando ela falou sobre o telefonema e comentou que Shiryu estava indo para o Santuário.
– Vai começar, Shunrei – o Mestre disse ao sentar na mesa para almoçar. – Prepare-se.
Ela serviu o almoço para o Mestre e também tentou comer alguma coisa mas não conseguiu engolir mais que uns bocadinhos de arroz. Depois de lavar a louça e limpar a cozinha, trancou-se no quarto e começou sua vigília por Shiryu, mas acabou se sentindo sufocada no quarto. Quando o sol esfriou, resolveu sair de casa. Precisava estar perto da natureza, respirar o ar puro de lá de fora, por isso foi até a pedra em frente à cachoeira, ali mesmo onde Shiryu inverteu o fluxo das águas. De joelhos, voltou a rezar fervorosamente rogando a Deus que o protegesse.
Enquanto isso, em casa, o Mestre Ancião tentava monitorar o que estava acontecendo no Santuário através de seu cosmo. Eventualmente comunicava-se com Mu e foi assim que ficou sabendo que os cavaleiros de bronze já tinham chegado lá com Saori, porém ela foi atingida por uma flecha de ouro antes mesmo de começarem a subida das Doze Casas. O relógio de fogo foi aceso, marcando o tempo de vida restante para a deusa: doze horas. Esse era o tempo que seus cavaleiros tinham para atravessar o Zodíaco Dourado e trazer o Grande Mestre até ela. Só ele poderia remover a flecha e salvá-la. Se eles não conseguissem, estava tudo perdido.
Três horas depois, Mu avisou que os rapazes seguiam para a Casa de Câncer. Além da casa de Áries, atravessaram a de Touro com segurança. Aldebaran estava do lado deles, mas aplicou um pequeno teste a fim de prepará-los para o que vinha a seguir. Deviam ter passado por Gêmeos sem problemas já que não havia cavaleiro na casa, porém Mu comentou sobre certas perturbações que acabaram atrasando os garotos. Mas em Câncer era diferente. Máscara da Morte não os deixaria passar, portanto seria essa a primeira batalha real que os garotos de bronze enfrentariam no Santuário e, por causa do encontro desagradável de dias atrás, o Mestre Ancião estava certo de que o cavaleiro italiano iria com tudo para cima de Shiryu.
Alheia a tudo isso, Shunrei continuava orando incansavelmente. Intensificou as preces quando começou a sentir Shiryu aproximando-se perigosamente de algo muito ruim.
– Deus, proteja o Shiryu – ela começou a dizer em voz alta. – Permita que ele volte em segurança. Proteja o Shiryu, eu imploro. Não importa o que aconteça conosco quando ele voltar e souber dessa gravidez. Apenas proteja o Shiryu... Pode levar minha vida se quiser... Só permita que ele volte vivo.
Ela continuou rezando até que em determinado momento pensou ter ouvido Shiryu chamá-la. Começou a se perguntar como seria possível algo do tipo. Ele estava em Atenas, a milhares de quilômetros de distância, mas ela tinha ouvido claramente, quase como se estivesse com ele ao telefone de novo... Primeiro achou que estava ficando louca, depois pensou que era possível que, de alguma forma misteriosa, conseguissem se comunicar. Seria através do que os cavaleiros chamavam de cosmo? Imaginar essa possibilidade deu a Shunrei novo fôlego para rezar com ainda mais fé, mas foi surpreendida por uma força invisível que a ergueu no ar, carregando-a para cima e para o lado, diretamente para o abismo. Se caísse no lago daquela altura, não teria a menor chance... Não conseguia entender o que estava acontecendo e muito menos lutar contra. Estava longe demais da segurança da pedra e embaixo de si havia somente a queda brusca no rio. Não havia o que fazer, por isso ela simplesmente resignou-se. Ofereceu a própria vida em troca da de Shiryu, não foi? Talvez Deus tivesse resolvido aceitar a oferta.
– Talvez seja melhor assim… Talvez seja o nosso destino, o meu e o desse bebê na minha barriga... Que seja feita a Vossa vontade, Senhor.
Shunrei fechou os olhos, prendeu a respiração e esperou. Depois de alguns segundos, despencou no vazio. Esperou o impacto contra a água mas ele não veio porque antes disso outra força invisível sustentou novamente seu corpo no ar e a ergueu, trazendo-a de volta à segurança do patamar de pedra. Estava encharcada pela água que espirrava da cachoeira, mas não tinha sofrido um arranhão sequer.
– Você está bem, Shunrei? – o Mestre Ancião perguntou.
– O que houve? O que foi isso? – ela retorquiu, ainda muito assustada com aquilo tudo.
– Foi o Máscara da Morte – explicou o Mestre. – Suponho que suas orações tenham incomodado ele.
– Eu não entendo... como eu poderia fazer isso? Estou tão longe...
– Não se preocupe em entender, Shunrei. Vá para casa. Você está toda molhada. Enxugue-se, coloque uma roupa seca, minha querida. Não quero que fique doente, ainda mais no seu estado.
– Mas eu preciso continuar rezando pelo Shiryu... Sei que ele está em perigo.
– Tanto faz você rezar aqui ou em casa, então é melhor que reze lá, quentinha, na segurança do seu quarto.
Ela admitiu que o Mestre tinha razão. Deus a ouviria onde quer que estivesse rezando, então obedeceu e voltou para casa, caminhando com alguma dificuldade pois as pernas ainda tremiam do susto. Quando chegou, ela já se sentia um pouco melhor. Enxugou-se, vestiu um pijama bem quentinho, sentou-se na cama e recomeçou suas preces. Se o Mestre estivesse certo, se ela tinha incomodado um cavaleiro de ouro a ponto de ele tentar matá-la, então significava que rezar não era um gesto inútil. Sua oração realmente possuía algum poder e ela pretendia continuar usando.
O Mestre Ancião seguia monitorando o que acontecia no Santuário e sentiu o cosmo de Shiryu expandir-se furiosamente. Deduziu que a causa dessa explosão foi o que Máscara da Morte tentou fazer com Shunrei. Pensou em avisar ao discípulo que ela estava bem, mas desistiu pois achou que seria bom para ele canalizar essa raiva e usá-la diretamente no adversário. Quando sentiu o cosmo do italiano se extinguir, comunicou-se com Mu e ele confirmou: Shiryu derrotou o cavaleiro de Câncer. Só então buscou o cosmo do discípulo e avisou que Shunrei estava salva. Notou a imediata mudança no cosmo angustiado de Shiryu, o que comoveu o velho Mestre. Ele notou outra coisa: os olhos feridos de Shiryu estavam curados. Ele finalmente atingiu o sétimo sentido e, combinando o poder da Água da Vida e as orações amorosas de Shunrei, curou-se.
Shunrei continuou suas preces, mas as horas foram passando e, exausta, ela acabou pegando no sono. Acordou sobressaltada horas depois, com uma dor excruciante no peito, como se tivesse uma espada cravada nele. Ela sabia que era algo com Shiryu de novo e não conseguiu mais ficar deitada. Levantou, tentou se acalmar, tomou um copo de água, mas a sensação ruim não passava nunca. Ao olhar pela janela, ela viu uma estranha estrela subindo no firmamento ao invés de cair e soube de imediato que era ele... Era o seu dragão ascendendo aos céus.
Shunrei correu até onde estava o Mestre, alimentando a esperança de estar errada, mas nem precisou falar nada porque a expressão de pesar dele dizia tudo.
– Não... – ela murmurou. – Não pode ser...
– O Último Dragão – disse o Mestre tristemente.
Quando Mu informou que Shiryu ia lutar com Shura, o Mestre Ancião soube que seria uma batalha duríssima, afinal o que se dizia era que foi Shura o assassino de Aiolos. Esperava que o discípulo se lembrasse de todos os ensinamentos e que isso o ajudasse a vencer sem precisar chegar ao ponto de cometer esse ato de puro desespero. O Último Dragão era suicídio… Mas Shiryu era assim mesmo… Ele sempre estava disposto a se sacrificar. Ele tinha vazado os olhos pelos amigos, também morreria por eles e pelo que acreditava, mas isso era triste demais. Ele era jovem demais… E o Mestre sonhava em vê-lo como seu sucessor, altivo e nobre, vestindo a bela armadura de Libra. Desejava vê-lo casado com Shunrei, com aquela casa cheia de filhos, incluindo esse que ela já esperava, porque conhecia muito bem seu discípulo. Ele sofria muito por ter sido abandonado, se Shunrei resolvesse mesmo ter essa criança, ele não permitiria que ela tivesse o mesmo destino.
– Não... Ele não pode ter morrido, Mestre... – Shunrei disse.
O Mestre falou algo sobre Shiryu viver pela justiça, mas Shunrei não conseguiu prestar atenção nas palavras dele. Não podia aceitar a morte de Shiryu depois de tão pouco tempo efetivamente juntos. Um mês… Só namoravam de fato há um mês… E agora tudo que lhe restou foi esse filho no ventre… Se ao menos fosse dele… Seria um consolo imenso ter uma parte de Shiryu crescendo dentro de si, mas não, tudo que ela tinha era um pedaço de brutalidade que viria ao mundo para lembrá-la de Ohko todos os dias da sua vida, até que pudesse partir e se juntar a Shiryu no outro mundo.
– O outro mundo… – ela murmurou, olhando para baixo, para onde horas atrás Máscara da Morte tentou jogá-la.
Era só dar alguns passos para pôr um fim em tudo isso. Alguns passos e iria com Shiryu. Era só levantar e caminhar... Um piscar de olhos e estaria com seu amor novamente, agora por toda a eternidade.
– Shunrei, não! – o Mestre gritou, segurando firmemente a mão dela. – Não é seu dia de morrer. Acha que Shiryu ia gostar que você se entregasse? Você precisa viver, filha!
– Mas eu não sei se consigo… – ela murmurou. – Dói tanto, Mestre…
– Você é mais forte do que pensa – disse o Mestre e a conduziu de volta para casa.
Continua…

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