23 de janeiro de 2021

Quase Sem Querer - Capítulo VII - Simples


Por que você mandou o Shura vir aqui? – Hyoga perguntou a Shun, bastante irritado, no instante em que o médico entrou no Vidianu com Natássia.

Nossa, quanta gentileza ao receber nossa visita! – retrucou Shun ironicamente. – É assim que se começa?

Envergonhado, Hyoga pegou a menina no colo, deu um beijo nela, e também cumprimentou Shun com um abraço discreto, apesar de o bar estar vazio.

Desculpa... – pediu o barman. – Eu estou um pouco irritado...

Estou vendo.

No colo do pai, Natássia examinava o bar com curiosidade.

É aqui que o papai trabalha? – ela perguntou.

É, filha – ele respondeu. – Você gostou?

É bonito – ela disse. Quando ele a colocou no chão, ela saiu correndo pelo estabelecimento.

Agora me explica – Hyoga disse a Shun, puxando-o para perto do balcão. – Por que diabos mandou Shura vir pedir emprego aqui?

Porque você tinha uma vaga de trabalho no bar e ele precisava de um emprego.

Mas ele não tem experiência nenhuma! Ele nem sabe direito o que está fazendo nesse mundo!

E quem é que sabe? – Shun retrucou, sentando-se em um dos bancos. – A vida é tão complicada. Melhor dizendo, a gente complica tanto a vida. Não seja tão duro com o Shura. Ele precisa de uma chance e de amigos. Fiquei muito comovido com o que ele me falou no parque naquele passeio que fizemos juntos. Ele falou do passado, de como não tinha uma relação próxima com os antigos companheiros dourados... Ele precisa de nós. E eu disse a você que ia ajudá-lo a ter uma juventude feliz. É isso que estou fazendo.

Sim, mas não pensei que isso significaria dar um emprego a ele!

O Shura é muito responsável, inteligente, esforçado. E é bonito. Não finja que não vê. Aliás, onde ele está?

Está lá dentro com a Mama, ela está ensinando umas coisas a ele. Eu o contratei, mas só fiz isso por você.

Você não vai se arrepender, seu teimoso antissocial.

A Mama adorou ele...

Ótimo! Assim ela para de dar em cima de você.

Hyoga encarou Shun surpreso.

Que foi? – Shun perguntou. – Acha que eu não vejo? Que eu nunca percebi?

É só brincadeira dela... Ela brinca o tempo todo comigo...

Sei... Você já transou com ela?

Você não costumava ser tão direto... Isso é importante?

Não, mas eu tenho curiosidade de saber. Já?

Ah, Shun, pelo amor de Deus! – exclamou o russo e foi para o lado de dentro do balcão.

Responde. É só uma pergunta.

Hyoga não sabia o que falar, não queria responder, mas também não queria mentir para Shun. Então respirou fundo e disse, bem baixinho:

Antes de trabalhar no bar ela fazia programa e eu fui um cliente… bastante assíduo... porque eu precisava... relaxar...

Eu já sabia! – Shun exclamou rindo. – E não estou te julgando. Longe disso.

Então por que perguntou, caramba?

Porque eu queria ouvir dessa sua linda boca e porque você fica lindo quando está envergonhado! Vai, prepara um drinque pra mim. Você fica com um humor melhor quando está trabalhando. Hoje não quero o scotch de sempre, quero algo especial.

Resmungando, Hyoga começou a preparar um drinque para Shun. Pouco depois, Shura saiu dos fundos do bar com Mama e os dois cumprimentaram o médico.

Obrigado, Shun – agradeceu o espanhol, curvando-se como os japoneses. – Obrigado por ter acreditado em mim. Prometo não decepcionar vocês dois.

Eu sei que não vai – Shun afirmou sorrindo. Achou que o rapaz estava ainda mais bonito com o uniforme do bar e o avental. Também reparou que Mama o devorava com os olhos e resolveu provocá-la. – Tudo bem, Mama? Gostou do novo funcionário, não é?

Ai, doutor, ele é ótimo! – Mama respondeu, suspirando. – Tenho certeza de que vamos nos dar muito bem!

Espero que sim, Mama.

Quando Hyoga terminou de preparar o drinque, Natássia correu até eles e examinou com curiosidade a taça de Blue Moon, que tinha um chamativo tom de azul escuro quase arroxeado.

Quero um desses! – a menina falou.

Quando você tiver uns trinta e cinco anos e morar sozinha – Hyoga respondeu.

Vai demorar? – ela questionou.

Faz um sem álcool pra ela– Shun pediu de um jeito tão doce que Hyoga não resistiu e obedeceu.

O barman reparou um refresco de limão na mesma taça usada no drinque, colocou uma gota de corante azul para ficar parecido com o tom do Blue Moon e deu a Natássia, que fitou a bebida encantada. Shun brindou com ela e cada um tomou sua bebida.

Ficaram mais um pouco no Vidianu e quando o bar começou a ficar movimentado, Shun se despediu do namorado e foi embora com Natássia. Mais tarde, ao retornar para casa, Hyoga encontrou Shun ainda acordado, lendo, mesmo já passando das três da manhã.

Oi, querido – Shun cumprimentou com um beijo. – A Nat demorou a dormir de tão animada com o passeio no bar do papai e eu acabei perdendo o sono. Vem cá. Senta aqui.

Hyoga atendeu e Shun largou o livro para fazer uma massagem nos ombros do namorado.

Nossa, tão tenso... – comentou Shun.

Você sabe o que fazer para me relaxar – ele murmurou de modo sensual e inclinou a cabeça para trás, ansiando por um beijo do namorado, que veio junto com uma carícia em seu baixo-ventre e um convite para terminarem na cama o que começaram.



Dias depois, os cavaleiros tiveram de enfrentar perturbações inesperadas na cidade praiana de Atami. Shura acabou sendo sugado para o Mundo dos Mortos e alguém precisava ir lá ajudá-lo. Com Seiya e Shiryu debilitados demais, Shun se ofereceu para ir, porém Hyoga não permitiu. Temia que, sendo ele o antigo receptáculo de Hades, essa volta ao submundo pudesse afetá-lo de alguma forma. O problema acabou resolvido com a ida de Máscara da Morte, o qual transitava livremente entre o mundo e submundo, mas tanto ele quanto Shura acabaram feridos.

Agora o grupo voltava para Tóquio no shinkansenexceto Seiya, que depois de sua breve aparição, sumiu novamente.

Eles vão se recuperar... – Shun disse ao sentar-se junto de Hyoga quando já estavam quase em Tóquio. Passou a maior parte do tempo de viagem cuidando dos dois feridos.

Ainda bem… – disse Hyoga.

Estabilizei o Shura – Shun prosseguiu.– Ele vai aguentar chegarmos ao hospital. O Máscara não quis atendimento, então acho que está bem.

Ainda não acredito que você queria ir ao submundo... – Hyoga comentou, sem conseguir esconder que estava magoado.

Alguém tinha que ir... – Shun justificou. – Shiryu ainda não se recuperou completamente, Seiya então nem se fala... Aliás, foi tão bom vê-lo... Já fazia tantos anos que ele não aparecia... Pena que foi embora de novo em vez de voltar com a gente.

Não muda de assunto, Shun. Se o Máscara da Morte não tivesse ido, você iria mesmo? Ia deixar a mim e a Natássia?

Você está falando como se eu fosse morrer com certeza absoluta. Eu podia voltar vivo, né? Um pouco de confiança em mim seria bom.

É podia voltar vivo, mas também podia morrer ou voltar mudado. O submundo podia transformar você...

Você sabe que esse é o preço de sermos o que somos.

Eu não quero te perder nunca, meu amor – Hyoga falou baixinho, embora quisesse gritar. – Eu te amo tanto, Shun. Eu preciso de você. Não faz isso comigo!

Um dia, infelizmente, vai acontecer, mas não pretendo que seja logo. Então, fique tranquilo. E eu também te amo, seu bobo.

Só tenta não se arriscar tanto… Agora somos uma família.

Eu vou tentar – Shun prometeu e, ignorando os outros presentes, deu um beijo em Hyoga, fazendo-o corar.

No dia seguinte ao incidente em Atami, Shun tentava manter-se focado em seu plantão. Tinha acabado de checar Shura, que estava internado sem previsão de alta, quando recebeu um aviso de uma das enfermeiras sobre seu irmão estar esperando em sua sala. Quase perguntou "qual deles", mas oficialmente só tinha um e já não o via há muitos anos.

O doutor ajeitou a gravata e o jaleco, e caminhou até sua sala num passo calmo e seguro, embora o coração estivesse acelerado. Trabalhar na urgência tinha lhe dado a habilidade de manter o controle mesmo em situações graves. Já tinha passado por um grande terremoto, com dezenas de feridos no pronto-socorro, e por um acidente de trem grave, onde várias vidas ficaram nas suas mãos, então não era a volta de Ikki que ia desestabilizá-lo. Respirou fundo várias vezes, buscando reforçar o autocontrole, enquanto tentava entender essa volta repentina do irmão.

O afastamento dele foi a coisa que mais o afetou na vida. Quase desistiu de estudar por causa da depressão em que caiu quando foi abandonado por ele. Só conseguiu se salvar porque ainda lhe restavam Hyoga, que sempre foi seu apoio, e Shiryu, que o tratou como um pai nos primeiros anos da faculdade.

De repente, ocorreu-lhe que a volta de Ikki estava relacionada ao namoro com Hyoga. De alguma forma ele devia ter ficado sabendo que a amizade tinha virado amor.

Sempre foi... – Shun murmurou sozinho pelo corredor, com o coração já mais calmo, mas preparando-se para rebater qualquer provocação que viesse de Ikki. – Sempre foi amor. E o Ikki não vai mexer com isso.

O médico decidiu que se fosse essa a razão da volta de Ikki, se ele veio para repreendê-lo, ia ter uma belíssima surpresa. Ele não era mais aquele menino frágil, chorão. Era um homem adulto, um médico que construía uma carreira respeitável, não ia engolir nada calado, nem mesmo dele.

Na porta da sala, Shun respirou fundo e entrou. Deparou-se com Ikki sentado displicentemente no sofá.

Olá, Ikki – cumprimentou Shun, mantendo a voz totalmente sob controle, e o rosto sereno, embora o coração tivesse voltado a bater descompassado.

Ikki ainda parecia o mesmo de sempre, com os cabelos tingidos de azul, a cara marrenta e a mesma velha dor entranhada no cosmo. E ainda parecia um adolescente rebelde, apesar dos quase quarenta anos.

E aí? – Ikki perguntou. – Estava passando por Tóquio. Achei que podia vir te visitar. Sala legal.

Há dez anos você não aparece... – Shun disse. Apesar de tentar parecer neutro, seu tom deixava transparecer certa mágoa. – Da última vez, eu ainda estava na faculdade. E quando eu me formei, você não estava lá...

É complicado...

Deve ser... – ironizou o irmão mais novo.

Como você está?

Nunca estive melhor – ele respondeu. – Estou muito feliz com o meu marido e minha filha.

Seu marido? – Ikki indagou.

É. E você conhece ele, é o Hyoga. Estamos criando uma filha juntos. Mas acho que você já sabia, né? Voltou por isso, posso apostar.

Não, eu não sabia. Eu não fico te seguindo. E não estou entendendo essa sua postura quase agressiva. Eu nunca disse nada sobre isso, sobre você ser gay, mas eu sempre desconfiei. Mais que isso, sempre desconfiei que você e o Hyoga... bom, estava bem óbvio.

Desculpa... – pediu Shun, envergonhado pela agressividade gratuita. – Eu achei que...

Logo você que sempre foi tão contra a violência...

Eu pensei que você ia falar dele ou da nossa filha e não ia admitir isso...

Eu só vim te ver, saber como você está. Sei lá, me deu vontade. Mas que negócio é esse de filha?

O Hyoga adotou uma menina, eu comecei a ajudar... Agora estamos criando ela juntos. Ela se chama...

Natássia – Ikki completou rindo e Shun assentiu. – O pato é muito previsível.

Shun tirou o celular do bolso, sentou no sofá ao lado do irmão e mostrou a ele várias fotos da menina.

Essa minha sobrinha é bem bonitinha – Ikki comentou.

Ela é a criança mais adorável do universo! Foi uma luz na minha e na do Hyoga, preencheu um vazio que eu nem sabia que existia.

Estou feliz por ver que você está bem, que tem uma família, é doutor. Eu sabia que você ia longe. Sempre foi melhor que eu em quase tudo, menos na hora da porrada. Estou orgulhoso de você, irmão.

Obrigado. Você podia ir jantar lá em casa algum dia e conhecer a Nat. Ela é um amor.

Pode ser... Vou ficar em Tóquio mais alguns dias.

Eu estarei de folga amanhã... – Shun disse e começou a anotar algo no seu talão de receituário. Quando terminou, entregou a folha a Ikki. – E esse é o meu endereço. Vamos te esperar. Agora preciso ir atender.

Certo. Até amanhã.

Depois de Ikki ir embora, Shun não teve muito tempo para pensar nesse reencontro, devido às várias emergências que apareceram durante o restante do plantão, e quando voltou para casa, estava tão cansado que dormiu algumas horas. Levantou-se revigorado e pronto para arrumar a casa e preparar as coisas para o jantar.

No apartamento vizinho, Hyoga estranhou ele não ter aparecido, já que sempre passava para vê-lo depois de um plantão. Resolveu ir até Shun e ouviu com surpresa a história de que Ikki tinha voltado. Ficou ainda mais surpreso quando soube que ele viria jantar. Shun pediu que ele arrumasse Natássia e viesse para o apartamento às oito horas da noite.

Mesmo achando que Ikki não apareceria, o russo telefonou para Mama, deixando o bar os cuidados dela. Depois, deu um banho em Natássia, pôs nela o vestido mais bonito e foi para o apartamento de Shun com a menina. Mais do que agradar o namorado, queria estar presente. Ainda não estava acreditando muito que Ikki aceitou tranquilamente o relacionamento entre os dois e estava pronto para defender Shun e Natássia com unhas e dentes.

Não sei se foi uma boa ideia convidar o Ikki – Hyoga finalmente comentou com Shun o que queria dizer desde cedo.

Claro que foi – Shun disse, enquanto arrumava a mesa. – Relaxa. Eu mesmo me armei para rebater qualquer crítica, mas ele reagiu de modo bem tranquilo. Acho que ele está cansado de ser um lobo solitário. Vamos recebê-lo de braços abertos, por favor.

Você e seu espírito de Médico Sem Fronteiras, querendo salvar todo mundo. O Shura, o Ikki...

Faz parte de mim, você sabe.

É, mas se o Ikki mexer com você ou com a minha filha, isso não vai dar certo...

Ele não vai fazer nada...

Ele é imprevisível, Shun!

E ele disse que você é previsível – riu Shun.

Tá, vamos ver quem está certo.

Pontualmente às oito horas, Ikki chegou. Foi recebido com um abraço do irmão e um cumprimento cordial de Hyoga. A pequena Natássia o olhou da cabeça aos pés.

Oi, tio... – ela cumprimentou meio desconfiada, agarrada na perna do pai, e olhando fixamente para o homem de cabelos azuis, que vestia calça e casaco de couro.

Olá, Natássia – ele cumprimentou de volta fazendo um carinho na cabeça dela. – Então vocês estão morando aqui? – perguntou depois de entrar e sentar no sofá sem cerimônia.

Shun e Hyoga também se sentaram. Perto do pai, Natássia continuava olhando fixo para Ikki, analisando-o.

Na verdade, só eu moro aqui – Shun respondeu. – O Hyoga mora com a Nat no apartamento vizinho. É que eu tenho uns horários de trabalho meio estranhos... E o que você tem feito da vida?

Estava por aí, vendo as coisas do mundo... Mas vou passar um tempo aqui no Japão, até essa merda toda acabar, essa loucura dos caras mortos estarem de volta, essas porcarias de Sem Rosto, Gladiadores, Mundo Perdido...

É, as coisas andam meio agitadas ultimamente – Shun comentou. – Mas faz parte... É assim que é.

Como vocês dois conseguem continuar vivendo como se nada estivesse acontecendo?

E por que não? – Shun perguntou. – Posso morrer lutando ou atravessando a rua. A verdade é que nunca se sabe quando vai ser a hora, então não deixo de viver por isso.

Falando assim parece fácil – Ikki disse pensativo. – Mas a maioria dos cavaleiros não consegue essa façanha, Shun...

Isso é verdade. Mas é possível, funcionou para nós dois e para Shiryu. Eu realmente acho que você devia voltar, tentar se aproximar de nós, tentar viver normalmente como fazemos.

Eu gosto de andar por aí e...

Não gosta de andar em bando – completou Shun. – Eu sei. Mas se mudar de ideia, meu apartamento está à disposição. E você vai ter bastante sossego, porque fico pouquíssimo tempo aqui. Geralmente, quando não estou de plantão, estou lá no apartamento do Hyoga.

Depois que essa merda toda acabar, talvez eu fique...

Fica, tio! – Natássia disse, finalmente se aproximando e puxando a camisa de Ikki. Depois, pulou no colo dele e o abraçou, deixando o cavaleiro meio sem graça. – Natássia gosta do seu cabelo azul. Parece bumun, aquela bebida que o papai faz.

Ela quis dizer Blue Moon – corrigiu Shun, rindo. – Fica aí conversando com seu tio. Vou finalizar o jantar.

E eu posso te servir uma bebida, Ikki? – Hyoga perguntou.

– Claro. Serve a mais forte que tiver, cunhadinho.

Continua...

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