Considerações
Iniciais: Essa história nasceu de
uma conversa muito louca com a minha querida amiga Saphira. Falávamos sobre
japonês e a Saph analisava uns kanjis, até que tivemos a ideia de analisar os
kanjis referentes aos nomes de Shiryu e Shunrei. Eu sempre tinha visto por aí
que o nome da Shunrei significava “Flor do Campo”, “Bela Flor” e similares. Até
que a Saph me chamou a atenção para uma coisa: não era flor, era primavera.
Primavera Bela, Primavera Graciosa. Não uma só flor. A primavera inteira! Aí
veio a ideia para essa história que eu considero uma das melhores coisas que
escrevi. Amo demais e espero que vocês gostem também.
PRIMAVERA GRACIOSA
E O DRAGÃO ROXO
Chiisana Hana
“As coisas precisam seguir seu
curso natural”, disseram-lhe como justificativa para confiná-la a um cômodo
pequeno durante três quartos do ano. Para que não interferisse nas estações, só
podia sair na primavera e algumas poucas vezes no começo do verão. Fora dessas épocas, saía somente se fosse
absolutamente necessário, como em caso de doença, mesmo assim, era carregada
para que seus pés não tocassem o chão. Quando tinham condições, pagavam um
riquixá, mas a mãe, viúva, mal podia manter as duas. Não tinha os tradicionais e cruéis ‘pés de
lírio’, felizmente. A mãe não tivera coragem de impor tamanho sofrimento à
menina. Bastava a maldição que ela carregava desde que nascera. Além do mais,
de que adiantaria ter pés de lírio se, do jeito que ela era, jamais arranjaria
marido?
A mãe deu-lhe o nome de Primavera
Graciosa porque já em seu primeiro banho, assim que os pezinhos tocaram a água,
minúsculas florezinhas espocaram. Mais tarde, quando começou a aprender a caminhar,
seus passinhos inseguros salpicavam o chão de flores e a mãe ia atrás,
arrancando tudo que brotava.
Acostumou-se desde muito cedo a
usar um sapatinho de sola reforçada com madeira e mesmo isso não era
suficiente, pois onde seus pés tocavam, florescia. Às vezes, a depender do seu
humor, brotavam do solo flores imensas em questão de segundos. Quando entrava
na água, logo ninfeias e outras flores aquáticas começavam a surgir. Certa vez,
quando se banhava no lago, tinham sido tantas que, com medo de emaranhar-se nas
raízes, ela saiu correndo para casa, deixando no caminho um rastro de flores
azuis.
Restrita a seu quartinho durante
três estações, passava os dias sobre a cama, costurando e bordando. Quando
eventualmente resolvia andar pelo cômodo, precisava sair arrancando as flores
que brotavam. Apenas uma ela não teve coragem de arrancar: a touceira de flor
do dragão, que aparecera num dia em que ela se sentia particularmente triste.
Estava chovendo e ela queria sentir a chuva tocando-lhe a pele, mas a mãe não
deixou que saísse. Então, saiu da cama, abriu a janela e esticou a cabeça para
fora, molhando-se. Ali, no cantinho abaixo da janela onde seus pés tocaram,
nasceu a planta. Lembrava que a tinha achado estranha quando viu surgir aquela
coisinha meio feiosa parecida com um cacto. Sempre apareciam plantas de flores
e folhas abundantes, nunca antes tinha nascido uma suculenta. Resolveu deixá-la
ali por que era diferente, tal como ela mesma. Era só uma suculentinha sem
flores afinal. Até que um dia a pequena surpreendeu-a com um tímido cacho de
flores pendendo para baixo, como sinos, que se abriram quando ela chegou perto.
Não eram lá muito bonitas, mas sem saber o porquê ela ficou encantada com o tom
intensamente vinho delas, algumas quase roxas. Cheirou-as. Não tinham um
perfume muito agradável, mas só se sentia se chegasse muito perto. Assim,
deixou a flor do dragão ali, no cantinho do quarto, e se encantava toda vez que
um novo cacho de flores surgia e se abria. A mãe contou-lhe uma lenda sobre a
planta, dizendo-lhe que recebera esse nome porque surgira do sangue que jorrara
de um dragão que fora morto por desvirginar uma donzela. Primavera Graciosa riu
e disse que dragões não existiam.
Quando a primavera chegava, seu
dom, que a mãe chamava de maldição, era bem-vindo e, por algumas horas todos os
dias, ela podia andar livremente, de pés descalços, deixando que tudo
florescesse ao seu redor e na água onde se banhava. Voltava para casa
satisfeita, sentindo-se livre e ansiando por outro dia, outra saída, mais
algumas horas do lado de fora, milhares de flores ao seu redor.
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Ele tinha sido condenado a viver
em sua caverna por toda a eternidade. Saía de lá poucas vezes, atravessando a
cachoeira que escondia seu lar, e não podia se afastar muito dali. Era seu
castigo por ter amado e ele o aceitou sem resistir. Não se arrependia de ter
enfrentado tudo pela moça que tanto amara, mas já tinha sido há tanto tempo...
Ele estava cansado de viver sozinho. Estava na Terra há milênios e enfrentava a
solidão cumprindo sua missão de zelar pelas águas.
Sabia de tudo que acontecia lá
fora através do que a chuva lhe murmurava. As gotas diziam o que haviam tocado
e quando, falavam dos cheiros e dos sabores dos quais ele tanto sentia falta.
Mas eram sempre as mesmas histórias e ele já estava cansado de ouvi-las através
dos tempos. Até que um dia os murmúrios despertaram novamente sua atenção, pois
falavam de uma moça com pés de primavera e ele não entendeu direito o que as
gotas queriam dizer.
“Pés de primavera?”, perguntou. E
as gotas disseram que onde os pés dela tocavam nascia uma flor. Ele se
perguntou como nunca antes as gotas tinham falado dela e, embevecido, chamou o
vento e disse que entregasse a ela um presente. Soprou uma sementinha vaporosa
da flor que tinha seu nome e o vento, seu amigo, levou até ela.
As gotas disseram que ela ficara
maravilhada com o presente e que mantivera a plantinha em seu quarto. O dragão
sentiu-se iluminar. A partir de então, passava os dias ansiando por notícias da
tal moça com pés de primavera. Ouvia atento tudo que o vento, a chuva e a terra
lhe diziam. Até que as notícias pararam de chegar. Simplesmente não tinham
visto mais a moça. Ele então se enfureceu e provocou uma tempestade. Choveu por
vários dias e noites sem parar e ele pedia notícias à chuva, mas ela não sabia
nada. E ele se impacientava cada vez mais, mandava mais chuva, mais chuva.
Pediu ajuda à terra, implorou que
lhe dissesse onde ela estava, mas a terra disse que não sabia dizer onde
encontrá-la.
Os dias passavam e ele continuava
fazendo chover na tentativa de encontrá-la. O vento compadeceu-se dele e soprou
as janelas com força, procurando-a. As gotas perguntaram ao rio se a tinham
visto, mas ele disse que há muito ela não aparecia. E o dragão mandava mais
chuva...
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Sob o retumbar dos trovões e a
chuva torrencial, vários aldeões reuniram-se em frente à casa de Primavera
Graciosa.
“Como é?”, perguntou a mãe.
“Querem que ela saia?”
“Sim!”, responderam em coro.
“Já passa da época desse inverno maldito
acabar”, disse um.
“Desse jeito, vamos morrer
afogados”, outro completou. “Primavera precisa sair para acabar com a chuva.”
“E quem garante que se ela sair,
não vai florescer tudo desenfreadamente e continuar a chover mesmo assim?”,
argumentou a mãe.
“Precisamos arriscar”, foi o que
ela ouviu em resposta e, resignada, foi chamar Primavera. A moça encontrava-se
encolhida na cama há semanas, sem ânimo para se mexer, desde que a mãe
arrancara sua flor de dragão. Nesse dia, Primavera tinha ficado de pés no chão
por horas e o quarto inteiro cobriu-se das mais variadas flores, exceto a do
dragão. Entristecida, resumiu-se à cama. Só saía dali para assear-se, com seus
sapatinhos reforçados, e passava os dias encolhida, numa melancolia de dar dó.
Sobressaltou-se quando a mãe entrou no quarto de chofre.
“Venha, filha”, disse ela. “Os
vizinhos estão chamando.”
“Eu não quero ver ninguém”,
grunhiu Primavera, arisca, e cobriu-se com o lençol.
“Eles querem que você saia.”
Primavera deu um salto e abriu um
sorriso luminoso.
“Sair? Sim, eu vou! E na chuva!
Eu sempre sonhei em sair na chuva!”
Descalça, colocou um pé para fora
de casa e ali brotou uma touceira de roseira-brava, deu outro passo, brotou um
pé de gerânios. Foi andando, sentindo a chuva no rosto, nos cabelos. Que
alegria sentia! Rodopiava pelo chão enlameado e escorregadio, caía, levantava,
tornava a rodopiar, as flores espocando sem controle onde os pés tocavam.
Maravilhados com o espetáculo, os aldeões demoraram a notar que os trovões
cessaram e a chuva começava a diminuir.
Em sua caverna, o dragão acordou
com o burburinho da chuva. Todas as gotas falavam ao mesmo tempo em que ela
apareceu, que estava dançando sob a chuva, e a terra contava que ela estava
feliz e por isso saíam as flores mais bonitas estavam saindo dos seus pés, e o
vento entrelaçou-se aos cabelos negros dela e trouxe seu perfume, que o dragão
aspirou enlevado.
Na casa de Primavera, irromperam
centenas de flores do dragão, com seus cachos violáceos, e a cada minuto surgiam
novos brotos e eles cresciam em segundos e saíam mais cachos de flores.
A chuva cessou por completo e sol
se abriu, mas Primavera continuou dançando lá fora. A mãe quis forçá-la a
entrar, mas ela se recusou. Corria alegre, agora com o sol tocando seu rosto pálido.
Até que, num rodopio, faltou-lhe o chão. Estava flutuando, sendo carregada pelo
vento. Alguns aldeões tentaram segurá-la, mas foi inútil, o vento a levava mais
alto e mais longe a cada lufada. E ela deixava-se ir, deliciando-se com a
sensação de voar livre mesmo sem ter asas, sentindo-se uma pétala ao sabor do
vento.
Pousou horas depois na beira de
um lago onde caía uma cachoeira, não sabia a que distância de casa, mas
certamente muito longe. De trás da cortina de água, saiu um dragão. Ela não se
assustou. Olhou extasiada para o animal mítico, que ela nem acreditava que
existia, e suas escamas arroxeadas, os expressivos olhos azuis, as poderosas
garras que saíam dos dedos dele.
Quando o dragão se aproximou, dos
pés de Primavera brotaram mais flores de dragão, milhares delas, abrindo-se por
todos os lados, mesmo em lugares onde os pés dela nunca haviam tocado, um
redemoinho de sinos vermelho-arroxeados, saindo da terra aos borbotões.
Com sua voz profunda, o dragão
pediu que ela subisse em seu dorso. Ela o fez. Mesmo assim as flores não
paravam de brotar. Agarrou-se aos longos bigodes do animal, ele deu uma guinada
para frente e Primavera teve de segurar-se com mais força para não cair. O dragão
flutuou, rodopiou no céu, e voou em direção à cachoeira, atravessando-a. Do
outro lado, sua imensa caverna, que tinha um brilho nacarado, como o interior
de uma concha, e abria-se para um vale verdejante. Primavera olhava o lugar
extasiada. Estava acostumada a ver as plantas brotarem sem controle ao seu
redor, mas nunca tinha visto nada tão bonito quanto o vale.
Acariciou o dragão e beijou-lhe
as escamas, sentindo-se em comunhão com aquele ser que amou sem saber desde o
dia em que a primeira flor de dragão abriu-se em seu quarto.
Quando enfim desceu do dorso do
animal, tamanha foi a surpresa de Primavera ao ver que estava livre. Ali o chão
não florescia ao toque dos seus pés.
Continua...