2 de maio de 2018

O Silêncio da Noite - Capítulo II - Abismo

Pelos passos duros, pesados, Shiryu sabia que um homem se aproximava, e sabia que ele estava com Shunrei porque a sentia, embora estranhasse o fato de não ouvir a voz dela. Antes que perguntasse, o homem disse que ele não devia se preocupar, Shunrei estava “apenas” inconsciente e, de imediato, Shiryu reconheceu algo familiar naquele jeito de falar. 

– Ohko? – Shiryu indagou. A voz tinha mudado, claro, ele já não era uma criança, mas o tom agressivo e rancoroso ainda era o mesmo. Só podia ser ele. 

O homem confirmou. Sim, ele era mesmo o antigo discípulo do Mestre Ancião, aquele que foi expulso do treinamento anos atrás. Shiryu perguntou quando ele voltou. Só depois lembrou-se de agradecer pelo salvamento de Shunrei, embora ainda não tivesse certeza de que ela estava realmente bem. Por que não recobrava logo a consciência? 

– Não precisa agradecer – disse Ohko, e colocou Shunrei no chão. – Ela já fez isso! Tenha certeza que ela fez... 

Shiryu estranhou o tom mordaz da última frase. Ohko dizia algo nas entrelinhas? Não teve tempo de pensar mais nisso, pois o rival passou a falar da promessa feita na infância, de acertar as contas... Que contas? O que aconteceu na infância foi pela própria indisciplina dele! Não havia nada a “acertar”. 

Mas Ohko discordava e continuou a provocar Shiryu até se cansar e partir para a ação, atacando o cavaleiro, o qual reagiu debilmente. 

Ohko decepcionou-se. Esperava uma boa luta com Shiryu até vencê-lo, mas quem era esse homem sem forças, de olhar vazio? Esse era o escolhido do Velho Mestre Bundão? O queridinho? Era uma piada! E já que era assim, ele ia se divertir batendo um pouco mais no otário. Pensou em contar logo o que fez com Shunrei minutos atrás, mas deixou para depois. Seria o toque especial no desfecho de sua vingança. 

Enquanto recebia os golpes, Shiryu sentiu aquele cosmo cheio de ódio e rancor e foi tomado por um sentimento que não esperava: estava com medo... Estava com muito medo.

– Se não toma a iniciativa – Ohko disse, agora decidido a golpear com força total aquele fiapo de cavaleiro na frente dele –, então eu tomarei por você. O GRANDE FURACÃO DO TIGRE!

Shiryu recebeu o forte golpe passivamente, sem sequer tentar se defender, e foi jogado contra o paredão de pedras. Pensou com tristeza que nunca tinha sentido medo antes e entregou-se a seu destino. Que Ohko o matasse logo. Já não servia mais para nada agora que era um cavaleiro cego e medroso. 

Aguardou a morte. Aguardou que ela viesse silenciosa e triste, mas o que veio foi um grito de Shunrei mandando-o que parassem com aquilo. Ele arrepiou-se, pois sabia o que viria em seguida e, como previu, ela revelou a cegueira.

“Não!”, Shiryu pensou. “Por que ela fez isso? Não queria que ele soubesse... Eu só queria... morrer.”

Entretanto, o alerta dela surtiu efeito e Ohko parou de atacar. Shiryu ainda arrastou-se no chão, implorando para que o rival continuasse, para que não tivesse pena dele.

– Por hoje é só... – Ohko disse, e antes de se afastar dirigiu a Shunrei um olhar cheio de maldade e malícia. – Mas talvez eu volte, Shunrei. Gostei do dia de hoje. Talvez queira mais.

Ignorando o calafrio provocado pelas palavras dele, Shunrei correu até Shiryu e o abraçou. Ajudou-o a se levantar e depois recolheu as próprias roupas onde as tinha largado. Vestiu-as rapidamente para livrar-se do casaco imundo de Ohko, o qual jogou no rio para que a correnteza levasse. Segurou a mão de Shiryu e os dois voltaram para casa em silêncio, ele apenas deixando-se guiar por ela, chateado por tudo que aconteceu consigo, e totalmente alheio à dor dela. 

Já em casa, ele se recusou a entrar e ficou sentado na soleira da porta, remoendo os acontecimentos do dia. Ela deixou que ele ficasse e entrou logo, pois também precisava de algum tempo sozinha. 
Ansiava por tomar um banho de verdade para tentar se livrar daquele cheiro de animal que Ohko deixou impregnado em sua pele. Abriu o chuveiro e deixou-se ficar embaixo do jato por alguns minutos. As feridas arderam, mas isso era o menos importante. A outra dor era ainda maior... 

Esfregou o corpo todo com bastante sabonete, mesmo assim ainda achava que sentia o fedor de Ohko. Quando saiu do banho, vestiu um vestido folgado e de mangas compridas para esconder as marcas nos braços e porque as costas e joelhos esfolados contra a pedra doíam. 

Depois olhou o rosto no espelho. A marca do tapa era clara como se fosse uma estampa na pele alva. Shiryu não podia vê-la, mas o Mestre... Ele certamente comentaria algo e ela ainda não queria falar...

– Uma coisa de cada vez – ela disse a si mesma, e pegou a caixinha de primeiros-socorros. Passou um pouco de antisséptico nas feridas dos joelhos e depois foi fazer um curativo no ferimento que Ohko causou na cabeça de Shiryu. Ela já tinha olhado, era só um corte superficial, mas podia infeccionar.

– Eu estou bem – ele disse irritado, quando ela tocou sua cabeça. – Não precisa...

– Precisa, sim! Vai infeccionar.

– Já disse que não precisa! – ele repetiu, aumentando um pouco o tom de voz.

Ela ignorou a birra e fez o curativo. Quando terminou, sentou-se ao lado dele.

– Você está com raiva de mim? – ela perguntou. 

– Não. Por que estaria? – ele respondeu secamente.

– Sei que você não queria que eu contasse que...

– Que estou cego – interrompeu, com o tom rancoroso que ela detestava, mas que ele logo amenizou. – É, eu não queria. Mas não estou com raiva de você, estou com raiva de mim mesmo. Sei que você não fez por mal. Sei que só queria que acabasse.

– É... não fiz... eu não queria que ele machucasse você... 
 Queria completar dizendo que sabia do que Ohko era capaz por vingança, pois ele a tinha ferido da forma mais torpe, mas refreou-se.

– Estou bem – ele disse, e depois de uma breve pausa, prosseguiu. – Desculpe, eu estou pensando só em mim quando você quase morreu afogada. Se ele não tivesse aparecido, certamente você não estaria aqui. Se dependesse de mim... bom, você sabe. Como se sente?

Ela engoliu em seco. Não sabia o que dizer. Como se sentia? Humilhada, ferida, violada e aterrorizada pela possibilidade de Ohko aparecer novamente.

– Sinto-me um pouco cansada – ela respondeu, respirando fundo e omitindo deliberadamente a violência que sofreu. Não ia contar a ninguém. Aquela era uma dor só sua. Além do mais, não queria arranjar mais preocupação para Shiryu. – Meus braços e pernas doem, mas já passou.

– Você lembra como foi que ele te salvou?

– Não – Shunrei mentiu outra vez, mas os olhos marejaram e ela enxugou com a manga do vestido. – Eu acho que desmaiei. Só acordei quando vocês dois já estavam brigando.

– É... parece que o Ohko apareceu no lugar certo, na hora certa... – ele constatou magoado e um silêncio pesado formou-se entre eles. 

“Lugar certo e hora certa?”, Shunrei perguntou-se. 

Talvez tivesse sido melhor morrer afogada. Não teria passado pelo que passou. Teria sido poupada da humilhação e do sofrimento. Logo em seguida, arrependeu-se por pensar isso. Se tivesse morrido, quem ia cuidar de Shiryu e do Mestre? Precisava continuar viva por causa dos dois. A dor passaria algum dia... Tinha que passar.

– Posso te pedir uma coisa? – ela suplicou. Estava se sentindo tão sozinha, tão perdida...

– Claro – ele respondeu.

– Me abraça? 

Shiryu surpreendeu-se com o pedido mas a abraçou, primeiro frouxamente, meio sem jeito, depois foi envolvendo-a melhor, aninhando-a em seu colo. Não achava que era um bom momento para isso, mas ela quase tinha morrido hoje... Ela merecia esse pequeno gesto de carinho.
 
Ignorando a dor nas feridas das costas, Shunrei deixou-se ficar nesse abraço, no calor do corpo dele, rezando para que isso pudesse amenizar as outras dores. 

– Achei que não ia mais te ver – ela confessou, à beira das lágrimas novamente. – Pensei em você sozinho, desse jeito... Sei que você é forte, que ia aprender a se virar, que vai aprender, mas até lá quem ia cuidar de você? Não queria deixá-lo sozinho. É por você que ainda estou aqui...

– Eu também não queria ficar sem você, Shunrei – o cavaleiro admitiu e já que tinha começado, prosseguiu. – Fiquei desesperado quando você estava se afogando. Ouvia a sua voz e não sabia de onde vinha. E mesmo que soubesse... duvido que seria capaz... Mas eu ia tentar... Eu juro que ia. Eu queria tentar salvá-la. 

Shiryu sentiu o rosto esquentar de vergonha. Raramente falava de forma  aberta sobre seus sentimentos. Não podia ver, mas imaginou que Shunrei também tinha enrubescido.

– Graças a Deus voltamos um para o outro – ela completou, e ficou mais um pouco ali nos braços dele, sem falar nada, até que precisou voltar à realidade. – Obrigada por isso, Shiryu. Sinto-me um pouco melhor, mas agora preciso fazer o jantar.

– De nada – ele respondeu, e Shunrei achou que o tom agora só continha tristeza. 

Na cozinha, Shunrei procurou focar-se na preparação da refeição, embora não estivesse com vontade de cozinhar. Quando terminou, chamou Shiryu e o Mestre, e os três jantaram em silêncio, o que era bastante incomum naquela casa. Normalmente conversavam sobre o dia de cada um, elogiavam a comida, falavam dos planos para o dia seguinte. Hoje, porém, apenas sentaram-se, silenciosos e cabisbaixos, e tomaram a sopa sem graça que ela tinha feito. 

O Mestre não comentou nada sobre a marca na face dela, mas depois do jantar, quando Shiryu estava outra vez sentado na porta, ele aproximou-se.

– Shunrei, não vai me contar o que realmente aconteceu? – inquiriu.

– Foi como eu disse, Mestre – ela respondeu. Estava lavando a louça e não se virou para falar com ele. – Eu estava me afogando e o Ohko me salvou. Isso no meu rosto foi quando eu me debati na água, acho que esbarrei em alguma pedra.

– Uma pedra muito estranha. Estou vendo cinco dedos bem marcados... 

– Não foi nada, Mestre...

– Que o Ohko bateu em você eu estou vendo, mas o que mais ele fez?

Ela finalmente virou-se e retrucou com firmeza: 

– Já disse que não foi nada.

– Você não quer falar, tudo bem. Eu estarei aqui quando você quiser conversar.

– Obrigada, Mestre, mas eu estou bem. Não tenho nada para conversar.

– Certo... Eu vou me deitar. Me procure quando quiser conversar.

Shunrei assentiu tristemente e continuou a lavar a louça. Quando terminou, recolheu-se em seu quarto. Pensou no que Shiryu falou mais cedo: "eu também não queria ficar sem você..." Seriam essas palavras um sinal de que ele também a amava? Mas se ele a amava, por que insistia em lutar, já que essas batalhas também a machucavam tanto? Por que não esquecia isso tudo? Ainda mais agora que estava cego... Ela não conseguia compreender. Podiam ser felizes juntos. Ela não se importava com a cegueira dele. Ela o amava como sempre, não fazia diferença. Ela seria a visão que ele não tem mais. 

De repente, ocorreu-lhe outro pensamento. E se ele se importasse com o que aconteceu a ela? Se ele achasse que era culpa dela? Que ela podia ter evitado? Pensar nisso fez o choro que ela engoliu o dia inteiro libertar-se de uma vez só. 

Tinha sonhado tanto que seu primeiro homem seria Shiryu, que seria algo carinhoso e romântico, no aconchego do seu próprio quarto, com luz suave, beijos apaixonados e juras de amor eterno. No entanto, foi violada com aquela brutalidade, no chão de pedras à beira do lago, ouvindo toda sorte de vulgaridade da boca de um homem que cheirava como bicho.

Ainda sentado na soleira, Shiryu pensava no quase afogamento de Shunrei. Não conseguiu salvá-la, não conseguiu sequer tentar, e se seu rival não tivesse aparecido, ela teria morrido. 

Como podia ter se tornado tão inútil? Não se sentia digno de ser mais nada, nem cavaleiro, nem homem para Shunrei. Queria sumir, ser apagado da história, como se nunca tivesse existido um Shiryu no mundo. Shunrei, o Mestre e seus companheiros sentiriam sua falta, mas logo superariam. O Mestre acharia que ele tinha sido fraco, que morreu por isso. E Shunrei... Queria deixar o caminho livre para que ela encontrasse um bom rapaz e se casasse com ele algum dia. 

Sabia que ela o amava, ela deixava isso claro o tempo inteiro, e ele também a amava, embora não conseguisse demonstrar como deveria. Mas como prendê-la a esse amor por um homem inútil, um cego rabugento, um peso morto, um saco de lixo? Ele se sentia extremamente mal e sentia que tinha de fazer alguma coisa para mudar essa situação, mas não sabia o quê. Resolveu ir para o quarto e começou a andar pela casa, tateando cautelosamente para não esbarrar em nada. Porém, no silêncio da noite, ouviu Shunrei chorando.

– É por minha causa – ele murmurou, sentindo um nó formar-se na garganta. – Eu devia mesmo deixá-la em paz. Libertá-la da obrigação de cuidar dessa porcaria que eu me tornei.
 
E nesse instante ele soube o que tinha de fazer. 

Deu meia volta e saiu de casa seguindo o barulho da cachoeira. Estava decidido a andar em linha reta até o chão faltar e seu corpo cair no vazio, destroçando-se nas pedras lá embaixo. Era a melhor solução para todos. Shunrei choraria sua morte, mas o tempo faria com que ela superasse. E algum dia ele se tornaria só uma lembrança. Um cheiro que se perderia na memória. Uma voz que ela já não lembraria muito bem como era. Uma foto no criado-mudo que se apagaria com o tempo. 

Que viesse o vazio... as pedras... os ossos quebrados... o fim.

Continua...

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