9 de maio de 2018

O Silêncio da Noite - Capítulo III - Cura

 Shiryu! O que está fazendo? – Shunrei gritou ao vê-lo perigosamente perto da beira do abismo. Correu até ele e o abraçou.  Meu Deus! O que você ia fazer, seu teimoso?
 Eu não sirvo mais, Shunrei – ele disse, chorando e caindo de joelhos.  Sou um peso para você, sou peso demais para que eu mesmo possa aguentar. Não quero mais. Eu quero ir embora. Eu estou cansado... Tão cansado... Eu quero ir... Eu quero acabar com isso...
– Não! – ela gritou, também em prantos, ajoelhando-se ao lado dele. – Você é tudo que me restou. Se eu ainda estou aqui é por você. Sem você eu não posso suportar... essa dor... essa dor tão grande que eu estou sentindo. Eu preciso de você, Shiryu!
Shunrei estava a ponto de desabafar sobre o que tinha ocorrido depois que Ohko apareceu, bastava uma palavra de Shiryu, bastava um pequeno incentivo para ela ir adiante, mas ele estava tão centrado em si mesmo e em seu próprio problema que sequer percebeu o que estava implícito na frase dela. Achava que tudo se resumia a sua cegueira e a sua própria dor, então ela se manteve calada. Queria sentir raiva dele por ser tão egoísta, por não notá-la, mas o que sentia era pena dele e de si mesma.
– Vamos para casa... – ela disse, ajudando-o a se levantar. – E nem pense em tentar isso de novo. Me prometa que não vai tentar.
 Shunrei, não quero que se preocupe comigo. Quantas vezes vou ter que falar isso?
 Me prometa! – ela repetiu, agora em tom mais firme. – Prometa que, não importa o que aconteça, você não vai tentar se matar. Prometa! Prometa agora!
 Eu prometo – ele disse, apenas para ela parar de insistir. Não tinha certeza de que cumpriria essa promessa.
Então os dois caminharam de volta para casa, em silêncio, cada um pensando nos seus próprios problemas, experimentando uma sufocante solidão, embora vivessem na mesma casa.
Shunrei levou-o para o quarto, ajudou-o a trocar a calça empoeirada por uma limpa e deixou-o deitado na cama, pronto para dormir. Por precaução, trancou as portas da casa e levou as chaves consigo, guardando-as no fundo da gaveta de seu criado-mudo.
Ao invés de dormir, Shiryu remoeu os acontecimentos do dia até o amanhecer. Acabou tomando outra decisão: ia dar a si mesmo um prazo para se adaptar a sua nova condição de cavaleiro cego. Se não conseguisse, não cumpriria a promessa feita a Shunrei.
Como Shiryu, ela também não conseguiu dormir. Não conseguia parar de pensar nas últimas horas. Pensava em Ohko, na violência sofrida, mas também no comportamento de Shiryu. De manhã ele tinha dito que não queria perdê-la, tinha dado a entender que a amava e durante a madrugada ele resolve tentar se matar? O que tinha mudado em menos de um dia? E ainda tinha a mágoa por ele sequer perceber que ela sofria por algo mais que o quase afogamento.
No café da manhã, ele anunciou sua decisão, omitindo o que faria caso não conseguisse. Disse apenas que estava decidido a treinar duramente para conseguir voltar a ser o que era antes. 
O Mestre sorriu satisfeito. Sabia que isso ia acontecer a qualquer momento, conhecia o discípulo, sabia da força interior dele.
Shunrei achava que era cedo demais, ele ainda estava ferido da briga com Ohko, mas também sabia que os dois não iriam lhe dar ouvidos e sentia-se esgotada demais para argumentar com eles naquele momento. Mesmo assim, mais tarde, ao ver Shiryu pronto para sair e “treinar”, ela não aguentou. Pediu-lhe para esperar mais um pouco, pelo menos até que o corte na cabeça sarasse, mas ele não cedeu. Disse que não importava o que ela fizesse, ele jamais poderia retribuir. Ela retrucou que não se importava, que seria os olhos dele e foi sincera quando falou isso. Estava magoada e triste, mas o amor que sentia por ele era maior que essas coisas. Cuidaria dele a vida inteira se fosse preciso.
Ele engoliu em seco, tentando conter a vontade de gritar que sentia. Não queria que ela fosse seus olhos! Não queria continuar sendo um inútil! Queria poder ser forte novamente, independente, queria não precisar dos cuidados dela! Queria poder cuidar dela algum dia! Por que ela estava fazendo isso? Falando sobre levar uma vida tranquila com ele nesse estado? Ela precisava entender que se ele não começasse a reagir agora, depois seria tarde demais!
– Eu já disse. Não se preocupe comigo – ele repetiu, procurando usar um tom de voz ameno, e saiu tateando pelo caminho em direção à cachoeira.
Desceu devagar, guiando-se pelo som, esbarrando nas árvores e folhagens, tropeçando nas pedras. Quando chegou ao lago, tirou a camisa e entrou na água com cuidado, sentindo o chão com cautela e avaliando a correnteza e a profundidade. Colocou-se debaixo da queda d'água e sentiu a força da natureza fustigando seu corpo. O machucado na testa logo se abriu e começou a sangrar, mas ele sequer percebeu. Estava focado. Precisava continuar focado. Era isso ou o abismo.
Para garantir que ele não faria nenhuma besteira, Shunrei o seguiu. Estava tão deprimido que ela não confiava na promessa feita na noite anterior nem nessa repentina motivação, que podia sumir a qualquer instante. Ficou quieta atrás das pedras, observando-o. Pensou que era até bom ter de segui-lo, vigiá-lo. Fazer isso, junto com as tarefas domésticas, preenchia seu tempo, ocupava sua mente, fazia com que ela não pensasse em suas próprias dores. O problema era quando a noite caía e ela se recolhia em seu quarto...
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Nos dias seguintes, Shiryu continuou se recuperando física e emocionalmente. Ainda tinha momentos de baixo astral, mas no geral estava bem e animado com seus progressos. Estava pronto para reencontrar Ohko e mostrar que não era o cavaleiro de Dragão por acaso. Queria mostrar para ele, para o Mestre e para Shunrei que tinha superado a cegueira e ainda era digno de ser um cavaleiro.
– Shunrei... – ele murmurou tristemente.
Não compreendia o comportamento dela. Mesmo nos primeiros dias de cegueira, os mais difíceis, ela estava sempre sorrindo, dizendo coisas otimistas, pesquisando sobre remédios que podiam ajudá-lo. Agora ela parecia carregar sempre um peso consigo. Já não sorria como antes, não enchia a casa de alegria e frequentemente ele a ouvia chorar à noite. No começo, quis acreditar que ela chorava por ele não ter conseguido salvá-la do afogamento. Mas ele já estava bem melhor, não pensava mais em suicídio, se sentia pronto para lutar. Então por que ela ainda chorava tanto?
“Talvez ela melhore quando eu vencer Ohko e provar que recuperei minha confiança”, ele pensou. “Preciso fazer isso logo e ela verá que ainda sou capaz de protegê-la.”
Decidido, Shiryu foi até o Mestre e entregou-lhe a armadura de Dragão. Ia procurar Ohko e enfrentá-lo. Depois voltou para casa a fim de avisar Shunrei. Quando estava perto ouviu as batidas ritmadas do pilão. Ela preparava novamente o remédio que, acreditava, poderia curá-lo. Não teve coragem de se aproximar e se despedir dela... Ou venceria Ohko e voltaria com as forças renovadas ou morreria tentando. Era um caminho sem volta.
Em casa, depois de preparar o remédio, Shunrei estranhou Shiryu não ter voltado para o almoço. Intuiu onde ele estava e correu até o rio, onde o encontrou já lutando com Ohko, sob o olhar do Mestre. Achava que o maldito merecia uma punição dura pelo que fez e que se a punição viesse pelas mãos de Shiryu, seria perfeito. Mas aquilo só ia acabar quando um dele caísse morto e ela temia que fosse Shiryu. Então rezou fervorosamente para que fosse Ohko, para que, mesmo sem saber o que o desgraçado tinha feito, Shiryu o fizesse pagar. Que Shiryu livrasse o mundo daquela escória. 
E assim foi. Shiryu venceu. Ohko estava morto.
Ela correu até Shiryu e o abraçou. Secretamente, aliviou-se com a morte de seu estuprador. Olhou o corpo ensanguentado de Ohko com o mais profundo desprezo.
– Ele merece um sepultamento digno – Shiryu disse.
Shunrei não se manifestou. Queria gritar que o que ele merecia era ser jogado em qualquer lugar como um saco de lixo podre, mas ficou quieta. Resolveu ajudar Shiryu, guiando-o até um lugar apropriado, e ajudou-o a abrir a cova. Encarou como um ritual de encerramento, como um virar de página. Queria arrancar a dor do peito e jogar dentro daquele buraco, cobri-la de terra e nunca mais ter de senti-la.
Quando terminaram, voltaram para casa, taciturnos, exaustos e sujos de terra. Ela deixou que Shiryu se banhasse primeiro e depois banhou-se também.
“Ele está morto”, pensou, embaixo do chuveiro. Esperava que, de alguma forma isso tornasse as coisas mais fáceis, mas percebeu que não estava adiantando muita coisa. A dor continuava lá... Terminou o banho, foi para o quarto e o choro veio.
Sentado no sofá, Shiryu ouviu o pranto dela sem compreender. Embora cego, ele provou que não estava inválido! Conseguiu superar a perda da visão e vencer Ohko. Então por que razão ela ainda continuava imersa nessa tristeza toda? Não esperava que ficasse feliz, afinal ele tinha matado uma pessoa, mas que demonstrasse ao menos um pouco de satisfação por ele ter se superado.
Quando o Mestre Ancião voltou para casa, Shiryu resolveu conversar com ele sobre Shunrei. Esperava que ele o ajudasse a entendê-la.
– Eu venci – ele começou. – Eu derrotei o Ohko, voltei a ser o que era antes. Mas Shunrei continua triste. Sei que ela se sente cansada de ter de cuidar de mim, mas não entendo. Eu estou melhor, estou voltando a ser o que era, já não preciso de tantos cuidados. Não entendo por que ela continua assim tão triste.
O Mestre, que tinha decidido não interferir e deixar que ele e Shunrei se resolvessem sozinhos, impacientou-se com Shiryu:
– Quando você vai perceber que o mundo não gira em torno de você?
– Mestre, eu... – ele começou a falar, mas foi interrompido.
– Ela está sofrendo desde o maldito retorno de Ohko e você não percebeu que não era por você!
– Eu não podia imaginar que...
– Ela não me contou nada – o Mestre o interrompeu novamente –, mas voltou mudada aquele dia. Eu sei que aconteceu algo mais do que o que ela contou, eu imagino o que tenha sido e ela está sofrendo por isso!
– Mestre... – Shiryu, murmurou, cabisbaixo, envergonhado demais para olhar nos olhos do Mestre. – Mas o que houve afinal? Não consigo imaginar algo que tenha mexido tanto com ela.
– É Shunrei quem tem de contar... Se ela quiser.
Shiryu assentiu e levantou-se. Delicadamente, bateu à porta do quarto de Shunrei. Ela disse que entrasse e ele o fez.
– Está precisando de alguma coisa? – ela perguntou.
– Eu quero conversar... – ele disse, tateando até a cama dela. Shunrei o auxiliou e os dois sentaram na cama. – Estou preocupado com você. O que está havendo?
– Ah, nada, Shiryu – negou ela, pouco convincente. – Está tudo bem. Não se preocupe. Só foi um dia difícil e estou cansada.
– Não, não é isso. Você mudou. Agora você passa a maior parte do tempo em silêncio... e eu a ouço chorar à noite, quase todas as noites. E estava chorando há poucos minutos.
– Não é nada, Shiryu – ela disse e tentou engolir o choro que já começava a aflorar novamente.
– Fale comigo, por favor. Não quero que fique desse jeito... eu... me sinto tão mal por não ter percebido antes. Eu fui tão egoísta... Me perdoe. Preciso que me perdoe.
– Esqueça isso, Shiryu. Está tudo bem.
– Não está. Eu preciso saber o que está te machucando. Como vou te ajudar se eu não souber?
– Eu não queria que você se preocupasse – ela começou a falar, e não conseguiu mais controlar o choro.
Meio sem jeito, Shiryu a abraçou.
– Mas eu já estou preocupado e nem sei o porquê.
– Eu não quero contar a ninguém. É melhor assim... Agora já acabou...  Ele está morto...
– Ohko? O que ele fez? Não é melhor que eu saiba logo de uma vez? Talvez você se sinta melhor depois de falar.
Shunrei ponderou. Será que contar a ele poderia ajudar mesmo? Ela não tinha certeza, mas sabia que ele não ia desistir. Então respirou fundo e começou a falar, apesar do nó que se formava em sua garganta.
– Naquele dia em que eu quase me afoguei... ele... ele me estuprou...
Shiryu sentiu como se tivesse levado um soco. E detestou a si mesmo por não ter compreendido o sofrimento dela. Como pôde ser tão egoísta?
– Ele o quê? Ele foi capaz de...?
– Foi... ele me...  – Ela evitou repetir a palavra. – Foi horrível.
– Shunrei... Você sofre uma violência dessas mas continua se preocupando só comigo?
– Eu vou ficar bem... Eu acho... –  ela disse e, já que tinha começado, despejou tudo de uma vez. – Só não estou conseguindo parar de pensar no que houve. Especialmente no silêncio da noite... fico relembrando, fico ouvindo ele arfando em cima de mim... falando coisa obscenas... lembro daquele cheiro horroroso dele... e choro. Mas ainda é muito recente... Vai passar. Um dia vai ter que passar.
– Eu vou fazer de tudo para que passe, meu amor... – ele declarou, surpreendendo-a.
Shunrei ergueu o olhar para a face dele. “Meu amor”... Ele nunca tinha se referido a ela desse jeito ou demonstrado sentir qualquer coisa maior que carinho e respeito, até aquele dia em que ele falou que não queria perdê-la. Ela achou que era um sinal de que ele a amava, mas depois veio a tentativa de suicídio e ele tinha voltado ao “normal”. Mas agora... ele tinha dito “meu amor”. Ela não estava louca, estava?
– Se eu soubesse... – ele continuou. – Eu o teria feito sofrer mais... Ele ia me pagar muito caro pelo que fez com você. E tive pena dele! Estava sofrendo por tê-lo matado!
– Que diferença faz agora? – ela indagou. – Ele já está morto.
– A diferença é que ele ia saber que estava morrendo porque ele te feriu... porque você é o que tenho de mais importante nessa vida e eu não quero que ninguém te machuque.
Shunrei sorriu, embora seu rosto ainda estivesse banhado em lágrimas. Estava encantada com o que acabou de ouvir e Shiryu notou a mudança no estado de espírito dela.
– Eu te amo, Shunrei – ele disse, antes que perdesse a coragem de fazê-lo. – Eu sei que nunca demonstrei, sei que a faço sofrer quando vou lutar, sei que tenho sido rabugento nos últimos tempos, sei que fui egoísta demais nas últimas semanas... e peço perdão por tudo isso.
–  Não tem o que perdoar... –  ela disse, sinceramente.
–  Eu te amo há tanto tempo que nem sei mais quando começou – ele continuou. – Só sei que carregava isso comigo em segredo, sem saber como lidar, mas agora... depois disso... depois de saber...
– Eu também te amo, Shiryu – ela disse, e aproximou a face da dele.
Estavam tão próximos que sentiam as respirações descompassadas um do outro. Ele queria beijá-la, mas não sabia se devia, e não podia ver o rosto dela, analisar a expressão, saber o que ela queria. Então sentiu os lábios dela ternamente tocarem os seus. Abriu um pouco a boca, mostrando a ela que queria, mas deixou que ela definisse o limite. Shunrei entendeu e aprofundou o beijo, ousou introduzir um pouco a língua, tocando a de Shiryu. Os dentes tocaram-se levemente pela inexperiência dos dois, mas logo os dois se ajustaram e saborearam docemente seu primeiro beijo.
– O seu amor vai me curar... – ela disse, o coração disparado de emoção. Tinha esperado tanto esse momento. Shiryu dizendo que a amava e, logo em seguida, seus lábios nos dele, um beijo apaixonado. Saber que era amada fez com que ela se sentisse fortalecida, capaz de superar o horror daquele dia à beira do lado.
Era só uma questão de tempo.
Continua...

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