Capítulo II – O
Retorno
“Você despedaça meu coração
Antes de partir sem arrependimentos
Eu chorei por você, minhas lágrimas virando
sangue
Estou pronto para me render.
Você diz que eu levo isso muito a sério
E tudo que eu peço é compreensão
Trago de volta pra você
Um pedaço do meu coração despedaçado
Estou pronto para me render”(1)
Dezessete anos
atrás...
Sozinha nos
Cinco Picos Antigos desde que o Mestre Ancião e Shiryu partiram para aquela que
seria a última guerra, Shunrei sentia seus dias passarem arrastados. Esperava
não sabia exatamente o quê pois talvez eles nunca voltassem, mas duas semanas
atrás ela recebeu um telefonema de Saori avisando que a guerra chegou ao fim e
eles saíram vitoriosos. Shiryu e os companheiros estavam no hospital em Atenas,
muito feridos e seriam transferidos para Tóquio assim que possível. Quando isso
acontecesse, ela mandaria buscá-la em Rozan.
Desde então Shunrei
não teve mais notícias, por isso acreditava que Shiryu ainda estava se
recuperando na Grécia. Como não restava mais do que rezar por ele e esperar, ela
procurava maneiras de preencher seu tempo.
Saiu para colher ervas medicinais no
bosque mais uma vez, embora seu estoque já estivesse completo, e enquanto
colhia um pouco de camomila, um helicóptero passou e o barulho chamou-lhe a atenção. Não era um fato tão incomum, às vezes alguma tevê vinha fazer reportagens em
Rozan e geralmente sobrevoava em busca de imagens panorâmicas do lugar. Dessa
vez, entretanto, o coração dela dizia que era outra coisa e quando o barulho
começou a ficar cada vez mais perto, ela teve certeza: Shiryu já devia estar em
Tóquio e vieram buscá-la. Largou a cesta de ervas e correu para casa o mais
rápido que pôde. Estava preparada para ir, deixou a mala pronta, a bolsa
arrumada com os documentos, era só o tempo de pegar tudo, mas quando chegou
perto o suficiente viu que não era bem isso. Shiryu descia do aparelho com a
ajuda do piloto, sob uma chuva de pétalas do pessegueiro em frente à casa, o
qual estava pesado de flores.
Ela correu ainda
mais rápido e o abraçou o mais forte que conseguiu.
–
Shiryu... – ela murmurou, ainda agarrada a ele, ofegante por causa da corrida.
– Eu estava tão preocupada!
–
Agora está tudo bem – ele disse. Estava sentindo dor nas costelas, bem onde ela
abraçava, e em muitos outros lugares, mas não podia nem queria reclamar porque
sentiu tanta falta desse contato com ela.
– Eu
estou tão feliz!!
– Eu
também estou feliz por voltar para casa.
O
piloto colocou no chão a caixa de Pandora e uma mochila, e entregou a Shiryu
uma bengala, na qual ele se apoiou. Shunrei colocou a caixa nas costas e pegou
a mochila.
–
Não está muito pesado? – ele perguntou a ela, sorrindo.
–
Até parece que eu não estou acostumada a carregar peso! – ela riu. – Sou uma
garota forte da montanha!
–
Está bem, garota da montanha – ele riu, depois voltou-se para o piloto e
agradeceu.
–
Não gostaria de ficar para o almoço? – Shunrei perguntou.
O
homem agradeceu o convite, mas disse que precisava voltar imediatamente e
entrou no helicóptero.
Apoiando-se na
bengala e com Shunrei ao seu lado, Shiryu caminhou lentamente em direção à
casa. Quando os dois se afastaram o suficiente, o piloto do helicóptero ligou o
rotor e um novo turbilhão de flores os envolveu e invadiu a casa quando ela abriu
a porta. Shunrei não se importou. Daria trabalho limpar depois, mas tudo bem,
era um ótimo presságio ter Shiryu de volta em meio àquela nuvem cor-de-rosa.
Era a vida colorindo sua existência novamente.
Ela pôs a caixa
de Pandora no canto da sala onde ela sempre costumava ficar, colocou a mochila ao
lado e ajudou Shiryu a sentar-se no sofá. Depois, sentou-se ao lado dele.
– Eu mal acredito que você voltou! – ela exclamou, fitando-o com ar de puro
encantamento. – Meu Deus, como eu esperei por isso! Estava tão preocupada. Rezei
tanto por você. Tive tanto medo que não voltasse...
– Eu
sei... E você, como está? Como passou esses dias?
–
Agora estou ótima! Mas estava me sentindo muito sozinha. Essa casa fica muito
triste sem você e sem o Mestre…
Shiryu
engoliu em seco e abaixou o olhar.
–
Ele está morto, não está? – ela deduziu através da expressão dele.
–
S-sim – gaguejou Shiryu e engoliu em seco novamente. Passou a viagem pensando
em como diria isso a ela que aquele que os criou como um pai tinha partido, mas
ela se antecipou. – Ele se foi, Shunrei.
– De
alguma forma, eu sabia. Onde está… o corpo?
– Foi enterrado no Santuário junto com os
companheiros dourados.
– Quero ir lá algum dia – ela declarou. – Prestar uma homenagem a ele.
– Iremos… –
ele prometeu. –
Algum dia iremos, mas agora somos só nós dois, Shunrei.
–
Sim… Só nós dois… – ela repetiu, pensando no que isso significava exatamente
para ele.
Amava-o com
tanta intensidade que seu peito doía. Quando ele quase morreu naquela primeira
vez, quatro anos atrás, ainda na Guerra Galáctica, ela soube que era capaz de
qualquer coisa por ele. Teria dado seu coração para salvá-lo naquela ocasião.
Agora o amava ainda mais que antes, mas pensava que talvez ele não a amasse na
mesma medida.
Ele se importava com ela, isso era um fato, mas talvez fosse
apenas amor fraterno e gratidão. Às vezes parecia que ele a correspondia como
homem, ela chegou quase a ter certeza em algumas ocasiões, porém em outras ele
chegava a parecer incomodado com o amor que ela lhe dedicava, como no dia em
que se despediram antes de ele partir para essa última guerra.
“Tudo bem”, ela pensou, com lágrimas aflorando. “Eu posso cuidar de você
enquanto você permitir, meu amor. O Mestre dizia que cada pessoa vem ao mundo
com um propósito definido. O meu deve ser amá-lo sem exigir muito em troca.”
–
Ah, você está enxergando! – ela disse, enxugando as próprias lágrimas e
tentando deixar de lado suas dúvidas. – Fiquei tão empolgada que esqueci de
comentar. Que maravilha!
– É,
não muito bem, mas já é alguma coisa. Os médicos disseram para eu ir a um
oftalmologista. Provavelmente vou precisar de óculos.
– Bom, acho que você vai ficar lindo de
óculos!
Shiryu sorriu e logo depois ficou pensativo, como se procurasse as palavras certas
para continuar falando. Shunrei não interferiu, deixou que ele levasse o tempo que
precisasse, mas ele acabou não falando nada, então ela resolveu quebrar o silêncio.
–
Deixa eu tirar essas pétalas do seu cabelo – ela disse, e começou a fazê-lo.
– O
seu também está cheio delas. A casa inteira está. Deixa isso pra depois. Vamos
ficar assim, cobertos de flores.
Ele segurou
o braços dela gentilmente e puxou-a mais para perto, fazendo-a quase sentar em
seu colo.
– Eu
preciso dizer uma coisa, Shunrei…
Ela
o fitou expectante, imaginando se ele finalmente faria aquilo que ela tanto
esperava. Que fosse, ela pensou, que suas dúvidas acabassem nesse momento, que
ele dissesse finalmente que a ama, que as flores fossem mesmo um bom presságio!
–
Essa vida que eu levo… – ele começou, tocando suavemente o rosto dela. – Eu sei
que ela magoa você. Sinto muito por tudo que já fiz você passar. E enquanto
estava lutando, me preocupei tanto com você. Pensei em você aqui sozinha... Se
eu e o Mestre morrêssemos... Você nem imagina o tipo de coisa que passou pela
minha cabeça. Você podia adoecer, se machucar e não haveria ninguém aqui. Mas
agora a guerra acabou e realmente acredito que não vai recomeçar... Acredito
que teremos tempo, então eu preciso saber…
Ele
hesitou, deixando Shunrei ainda mais ansiosa. De repente, ela começou a duvidar
de novo e a pensar que ele ia dizer que voltou somente para se recuperar e
trazer notícias do Mestre, depois ia embora para sempre.
–
Não, eu preciso que você saiba… – ele continuou. – Preciso que saiba que eu a
amo e que se você ainda quiser esse soldado ferido na sua vida, estou pronto.
Podemos recomeçar a vida juntos.
– Eu
esperei tanto por isso, Shiryu – ela
respondeu, com os olhos novamente cheios de lágrimas, agora de felicidade, as
quais ele enxugou com as costas da mão.
Depois,
ele segurou o queixo dela suavemente e fixou o olhar no dela. Shunrei
entreabriu os lábios, deixando claro que ele podia e devia ir adiante, o que
ele fez. Encostou seus lábios nos dela, suavemente, apenas sentindo-os entre os
seus e experimentando as novas sensações despertadas por esse primeiro beijo
que, ainda meio tímidos e desajeitados, eles lentamente foram aprofundando. Deliciaram-se
com a maciez cálida e úmida um dos lábios do outro e deixaram as línguas
tocarem-se devagar, encontrando o encaixe perfeito aos poucos.
– Eu
tinha tanto medo de que você não me quisesse dessa forma – Shunrei confessou
depois do beijo. – Agorinha mesmo eu estava pensando nisso e que se esse fosse
o caso, mesmo assim eu cuidaria de você…
– Sinto
muito que tenha pensado assim... – ele disse, fazendo um carinho no cabelo
dela. – Durante todos esses anos, eu só quis te proteger, por isso mantive meus
sentimentos em segredo.
– Me
proteger? – riu Shunrei, sem entender o que ele queria dizer.
– Eu
não queria essa vida para você. Queria que você pudesse conhecer e amar alguém
normal, que não precisasse passar por tudo que já fiz você passar. Até tentaram
matá-la por minha causa…
– E
quem te disse que eu quero uma vida “normal”? Eu quero a vida que você puder me
dar. Eu te amo tanto, Shiryu. Eu amo você do jeito que você é, eu amo o que
você é, eu tenho orgulho de você.
– E
eu também te amo muito, Shunrei. Eu nunca te contei isso, mas quando lutei com
o Máscara da Morte, eu disse a ele que
você era a minha coisa mais importante. Agora finalmente você sabe disso.
– Você
é malvado por me fazer pensar esses anos todos que eu não era amada.
– Agora
você sabe que é a mulher mais amada desse mundo!
Ela
olhou para ele e depois ao redor. Estavam os dois e a casa inteira coberta de
pétalas, ele ali finalmente se declarando, tudo contribuía para reforçar a
atmosfera de sonho, mas era real. O beijo foi real. Então ela aninhou-se melhor
no colo dele, cuidadosamente para não magoar os ferimentos. Ia pedir que ele a
beijasse de novo, mas não precisou, porque ele sabia o que ela queria e também
desejava o mesmo. Dessa vez, ousaram usar mais as línguas, um buscando a do
outro, e só pararam quando perderam o fôlego.
Shunrei
queria ficar mais no colo dele, mas saiu e sentou ao lado, por não saber ainda
que ferimentos ele tinha exatamente.
–
Tudo bem – ele disse. – Você é leve. Não estava me machucando.
–
Melhor não abusar. O que você teve? Se machucou muito?
–
Um monte de ferimentos como sempre. Fizeram uma cirurgia – ele levantou a
camisa para mostrar o corte ainda com os pontos.
–
Colhi muitas ervas nesses dias e vou fazer umas compressas cicatrizantes. Vai
ficar bom logo.
–
Não tem mais pressa. Estou em casa.
O
estômago dele roncou, arrancando risadas dos dois.
– Parece
que alguém está com fome – ela riu. – Vou preparar um almoço maravilhoso para
nós dois! Andava sem vontade de cozinhar só para mim, então comia qualquer
coisa, mas hoje é um dia muito especial, vou caprichar!
–
Vá – ele disse e já foi pegando a bengala para se levantar também. – E eu vou
começar a limpar essas flores…
–
Não precisa, eu limpo depois. Não quero que se esforce. Venha comigo para a cozinha,
me conte como foi lá na Grécia, conte tudo, eu quero te ouvir, quero ouvir sua
voz. Senti tanta falta de você, mas tanta falta que às vezes parecia que eu
escutava você falando meu nome, sabe? Achei que estava ficando louca, mas era
só saudade e medo de você não voltar nunca mais, de nunca mais ouvir sua voz.
–
Acho que não era isso – ele disse, acompanhando-a até a cozinha. – Acho que
você ouviu seu nome quando eu estava mesmo pensando ou falando em você.
–
Como isso seria possível, Shiryu?
–
Cosmo… – ele respondeu, lembrando que não era a primeira vez que ela o
manifestava. Podia ensinar algumas coisas a ela, podia treiná-la para usá-lo
melhor. Faria isso depois… Por ora só queria mesmo o almoço gostoso que ela ia
fazer, depois mais alguns beijos, e o jantar, e mais beijos...
Tinham muitos
anos de beijos para compensar e todo o futuro pela frente.
Continua...
((1) Bleeding Heart, Angra
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